Cartas para Teresa de Saldanha - Ana Emanuel Nunes








Querida Teresa de Saldanha,

Não sei se sabes, mas nos tempos que correm a carta já não é assim tão comum como era na tua altura. Se antes era o meio de comunicação principal, agora temos o imediato da internet que nos traz as notícias e nos põe em contacto. Mas continuamos a ter caixas do correio! E garanto-te que é sempre uma alegria quando, dentro delas, nos aparecem surpresas, não contas para pagar nem os assuntos burocráticos oficiosos que são uma chatice, mas aquelas boas surpresas, cujo remetente é alguém que nos é tão querido, um envelope escrito com aquela letra que nos é tão familiar e que traz dentro doses infinitas de carinho. Eu continuo a alimentar este belo hábito com as minhas amigas e hoje espero surpreender-te a ti também.

O remetente já é de longa data, é aqui a tua Ana Emanuel. E como todas as grandes amizades da minha vida, não sei precisar quando ouvi falar de ti ou quando me foste apresentada pela primeira vez. Sei, porém, que estava em Aveiro, embrenhada no meu curso de Música e envolvida na pastoral universitária, a fazer caminho em contraluz. Como todas as grandes amizades da minha vida, sei que entraste nela com toda a naturalidade: um convite para participar no encerramento do Ano Jubilar da tua Congregação, um “porque não?” da minha parte e depois a vivência desse momento, numa alegria tão sentida e com tanto sentido que acabou por me levar a fazer de convidada para integrar o teu Voluntariado. Não acabou, na verdade foi o início de uma bela jornada além de tudo aquilo que eu poderia ter esperado.

Porque realmente, no Voluntariado, tive oportunidade de concretizar, de uma forma muito particular, este meu anseio genuíno de criança de ajudar quem mais precisa, mas desta feita amadurecido com a consciência cada vez mais profunda da misericórdia de Deus por mim. Dei por mim a dedicar um ou dois dias por mês a ir à Loja Social, arrumar roupa até mais não, mas sobretudo a dar o sorriso sincero de quem sabe receber o “freguês”. Dei por mim a querer dedicar uma semana no verão para poder participar no “Dominismissio”, cheia de genica a preparar atividades, mas sobretudo a estar de coração disponível mesmo nas situações menos familiares em lares de idosos, jardins-de-infância, visitas porta a porta e centros de apoio a vítimas de violência doméstica. Dei por mim a querer esticar ao máximo todas as minhas férias de verão a meio do mestrado para poder partir em missão, comprometida a levar a música e a tocar ao máximo mas sobretudo a deixar-me tocar e a tentar ser, em Timor, a presença deste Deus que nos escuta e nos quer escutar. Então, dei por mim a perceber que ser missionária é uma identidade que marca tudo quanto se faz, é um redescobrir em cada instante da nossa vida o sentido da entrega e do serviço. É uma identidade que vai sendo desvendada nesta caminhada de grupo em oração, de partilha, de encontro com o outro que é tão diferente e tão igual a mim. É um crescer na medida em que o nosso olhar se alarga e que revela um mundo muito maior do que nós. E é uma identidade que impregna tudo do perfume da esperança e da fraternidade, é um perfume que é convite para que todo se atrevam a viver neste mundo renovado onde Deus é centro e o Amor a única resposta.

O meu grande desafio presente é esse mesmo: ser missionária onde estou. Ser professora de música em missão, ser filha em missão, ser irmã, neta, sobrinha, prima em missão, ser amiga e colega em missão, ser voluntária e cidadã em missão. E aqui, onde estou, é preciso saber partir todos os dias, é preciso predispormo-nos a olhar tudo quanto nos acontece com maravilha, com gratidão, a não cair na rotina e no cansaço de um quotidiano que, por vezes, parece nada nos querer retribuir. E tu inspiras isso, Teresa, porque também sentiste esse apelo, a viver a tua vocação religiosa em Portugal, onde Deus te fazia sentir mais necessária, mesmo que tal significasse trilhar o caminho mais difícil e a cada obstáculo ultrapassado encontrar outro para transpor. Mas, se Deus vela por nós e nos olha sorrindo, não dá para perder a coragem, não é?

Sabes, no outro dia, li num livro… dizia que para voar não era preciso ter asas, mas vontade. Dizia até que se pronunciássemos a palavra “vontade” propositadamente de forma ambígua, a poderíamos entender como bondade. Para mim que estudei em Aveiro e que de repente absorvi toda uma mistura de sotaques nortenhos na minha pronúncia, isto verifica-se de uma forma nada forçada e até mais vezes do que seria suposto. “vontade, ‘bontade’, bondade…” E é claro que precisamos das asas para voar, mas sem vontade, sem bondade, do que nos valem elas? E o que tu voaste, Teresa, o que tu voaste por teres acolhido a vontade de Deus e por teres deixado a bondade do teu coração irradiar à tua volta. Foste gaivota que voou bem alto e assim pôde ver bem longe.

Tal como tu, também nasci no meio de uma família nobre. Não temos os apelidos mais chiques e pomposos, nem tão pouco os palecetes e os títulos, mas temos a nobreza dos laços fortes entre nós, a nobreza de uma educação na e para a liberdade, da possibilidade de explorar os nossos interesses e de perceber, pelo amor e pelo perdão, que não somos só mais um, mas sim uma infinitude de potencialidades e oportunidades. E isto é uma base tão importante, que tu viveste e que te esforçaste por dar às crianças de quem cuidaste! Porque isto é o que nos dá a segurança para irmos à procura de nós, para irmos à procura do Deus em nós e daquilo que Ele espera para nós.

Contigo, Teresa, continuo a querer aprender a ser cada vez mais fiel nesta vontade, nesta minha vocação de Emanuel, e a ser capaz de me empenhar com a verdade de um coração humilde nas suas motivações. Toca-me tanto saber que, com 22 anos, já tinhas fundado a Associação Protetora das Meninas Pobres, num corre-corre apontado ao Alto. Toca-me ainda mais saber que antes de viveres o teu belo sonho de vestir o hábito, apoiaste que outras o fizessem primeiro que tu porque a fundação de uma congregação religiosa de vida ativa em tempos tão perigosos em Portugal não era um projeto só teu, era um projeto do Alto. Lá está: tudo isto por Cristo, com Cristo e em Cristo, onde cada desafio, dificuldade e alegria é dom em oração.

Contigo, Teresa, continuo a querer aprender a ser cada vez mais criativa e audaz nesta bondade, nesta minha vocação de Emanuel, e a ser capaz de me empenhar com a verdade de um coração atento aos sinais e às pessoas que se vão cruzando neste meu caminho. Toca-me tanto saber como as tuas palavras e o teus gestos foram sempre, e continuam a ser nas obras da tua congregação espalhadas pelo mundo, presença consoladora e dignificante, geradora e promotora de vida. E toca-me ainda mais saber que o teu legado de “Fazer o Bem sempre” é intemporal e perpetua-se em todos aqueles que se atrevem a conhecer-te: porque a memória do que foste e do que és não deixa ninguém indiferente. 

Feliz, mil vezes feliz sou neste voo. De verdade. Agradeço-te todos os nomes, todos os rostos e todos os sorrisos que pude encontrar porque tu nos uniste. E que eu também possa ser união, que possa eu ser união.

Até breve,

Ana Emanuel

Coimbra, 21 de fevereiro de 2021

Comentários

Cristina disse…
Que beleza de carta, encheu-me o coração! Muito obrigada, Ana!
Cristina Busto